ANTI-HERÓI: MANUAL DO USUÁRIO
“Anti-herói é o cara comum. Ele não tem habilidades, caráter (bom ou mau), destino, NADA de herói. Qualquer personagem do tipo aventureiro, não interessa o caráter, é herói, pela definição purista. O Wolverine é herói, o Jack Sparrow é herói, tanto quanto Super-Homem ou Galahad. Tem que lembrar que o conceito de herói foi criado numa sociedade que não tinha o conceito de pecado”.
- Eu mesmo num e-mail para Marcelo Cassaro.
“Então, anti-herói não é o mesmo que anti-pulga? Que decepção...”.
- Resposta do Cassaro.
Vamos começar com uma confissão: meu personagem preferido, tanto de HQs como de filmes, literatura... é o Super-Homem.
Talvez isso não seja aparente para quem lê meus livros (nos quais existe uma quantidade moderada de violência e sangueira, ou escatologia e sadismo). Mas eu me amarro no velho Kal-El, acho que ele é o símbolo de uma época e um ideal (mesmo que este nunca tenha se concretizado). Bem, após esta declaração de amor ao mais bonzinho dos super-heróis, digo que, entre os personagens da Marvel, meu preferido é o Justiceiro.
ANTI-HERÓI OU ANTI-PULGA?
Pode parecer uma contradição. Afinal, o Super-Homem é um herói íntegro, baluarte da moralidade, invulnerável, etc. O Justiceiro não tem poderes, mata indiscriminadamente, e simboliza toda uma era de violência nos quadrinhos. Em suma, é um anti-herói.
Será mesmo?
Na verdade, não. Ambos são heróis, no sentido mais puro da palavra. Assim como Batman, Wolverine, James Bond, Han Solo, Capitão Nascimento ou quaisquer outros de um sem-número de ícones da cultura pop. Por mais que estejamos acostumados a ouvir isso, “herói” não significa “santo” ou mesmo “sujeito bonzinho que ajuda você”. Herói é o protagonista, o personagem acima das pessoas comuns, que raramente hesita, não questiona suas decisões, etc.
Anti-herói não é o “protagonista cafajeste”, mas sim o sujeito comum, sem traços marcantes ou habilidades incomuns. Talvez o melhor exemplo seja o protagonista do filme “Anti-herói americano” (que tem pouco a ver com o título original, mas é um uso exemplar desse conceito). O Justiceiro é um herói. O policial que treme ao vê-lo, mesmo sabendo que ambos estão “do mesmo lado”, é um anti-herói.
Certo. Mas, entre os heróis, estamos falando daqueles menos “luminosos”, bonzinhos ou “paladínicos”. Estamos falando do Justiceiro, e não do Super-Homem. Muita gente gosta desses caras mais pesados ou violentos. Tenho certeza de que toda uma legião de psicólogos já escreveu teses sobre a razão disso, mas também podemos arriscar um palpite. Heróis violentos oferecem uma forma de catarse, uma “válvula de escape” para o público. Por um instante, podemos imaginar que temos poderes, mas não tantas responsabilidades. Se ficarmos com raiva de algo, imaginamos descarregar uma metralhadora, como o Justiceiro, e não controlar nosso sentimento, como o Super-Homem.
Então você decidiu jogar com um personagem um pouco mais sombrio, ou usá-lo como protagonista de alguma obra. Ótimo. Então, seu herói pode sair por ai, fazendo o que der na telha, não é? Matar indiscriminadamente, roubar, desafiar as autoridades! Nada pode detê-lo!
Já sabe a resposta: não, não é bem assim.
CÓDIGO DE HONRA (-1 PONTO)
Um psicopata ou maluco não é, em geral, um bom protagonista. É claro que existem psicopatas que são bons protagonistas (Hannibal Lecter, Dexter Morgan). Mas eles obedecem a certas regras, assim como todo herói.
O que nós chamamos de “escoteiros” ou “heróis bonzinhos” nada mais são do que heróis que obedecem ao código de conduta da sociedade em que vivemos. O Super-Homem não mata, não rouba, não mente, etc. Por que, na sociedade ocidental moderna, essas coisas são consideradas ruins. Se o Super fosse criado, digamos, na Grécia antiga, ele poderia matar, sem muitos problemas. Continuaria sendo um “herói bonzinho”, por que naquela época e lugar, matar seus inimigos era aceitável, dentro de certos limites.
Todos os heróis obedecem a um código de conduta próprio, chamado “ethos”. O ethos de um personagem define o que ele irá ou não fazer, quais são seus princípios morais, quais barreiras ele não irá ultrapassar. Pode coincidir com os conceitos da sociedade em geral, ou não. O Justiceiro, quando bem utilizado (por exemplo, na excelente fase escrita pelo Garth Ennis, atualmente sendo publicada no Brasil), é muito parecido com o Super-Homem. Por que ambos nunca se desviam de seu ethos.
O Justiceiro nunca mata inocentes, principalmente policiais e soldados. Preocupa-se com crianças, porque viu seus próprios filhos sendo mortos. E não perdoa os criminosos. Robin Hood rouba, mas só dos ricos, e dá as riquezas aos pobres. Kaneda, o protagonista de Akira, é um delinquente violento e drogado – mas não abandona seu melhor amigo, mesmo quando a cidade está desabando ao seu redor.
Se você quer um personagem sombrio, um herói amoral, então crie um ethos para ele – e siga-o, custe o que custar. O público (outros jogadores, Mestre, Leitores...) identifica institivamente um herói com seu próprio código de conduta, e passa a aceita-lo, mesmo que contrarie as normas da sociedade. Vendo Star Wars, sabemos que Han Solo voltaria para nos ajudar, mesmo que antes ele tenha matado a sangue-frio um capanga de Jabba (e todo mundo sabe que o Han atirou primeiro!).
SOU UM ANTICRISTO, SOU UM ANARQUISTA
“Mas assim o herói não fica previsível?”
Fica. Você está pegando o jeito da coisa.
Tanto o Justiceiro como o Super-Homem muitas vezes atuam como forças da natureza em suas próprias histórias. Não só eles são muito bons no que fazem, mas também já sabemos, mais ou menos, que atitude esperar dos caras. Se você não quer um herói tão “preso”, ele deverá quebrar seu ethos, pelo menos uma vez.
Sentimos que o personagem “está escorregando” quando o ethos é quebrado. São momentos de tensão, porque sabemos que o personagem pode “voltar-se ao lado negro”.
Quebrar o ethos também funciona quando você quer que o público não goste do personagem. Digamos que, para recuperar a Gema de Burungudu, o guerreiro precisa chacinar um convento cheio de freirinhas boazinhas e órfãos inocentes. Se a Gema não for recuperada, o mal vence e o mundo acaba. Não existe alternativa. O guerreiro vai ao convento e realiza um massacre.
O público vai perceber isso como inevitável, mas também desprezível. Por mais que saibamos que era necessário matar as freiras e os órfãos, passamos a gostar um pouco menos do guerreiro, mesmo que seu ato não seja inteiramente sua culpa. Se o guerreiro estivesse possuído por um demônio, a história seria diferente – ele nunca estaria na posição de fazer uma escolha.
Usar a quebra e manutenção do ethos também é uma boa ferramenta para criar vilões interessantes. Os vilões que nunca quebram seu ethos são considerados honrados, às vezes são mais queridos que os protagonistas. Os animes estão cheios de bons exemplos: vários Cavaleiros de Ouro, Desslock, (de patrulha estelar), Ashran (de Lodoss War)...
Vilões sem ethos nenhum funcionam melhor como capangas, ou máquinas de destruição (Dentes-de-Sabre, Godzilla) ou simples malucos (o Coringa, quando mal utilizado).Mas os vilões mais aterrorizantes costumam ser aqueles que têm ethos, e quebram-no.
É difícil imaginar claramente alguém sem nenhum parâmetro moral. Mas alguém que possui seus parâmetros, e rompe-os para atingir seus objetivos, é mais próximo de nós. E, por isso, mais assustador.
O vilão não precisa ficar repetindo seu código de conduta. Na verdade, é muito melhor que você demonstre isso apenas na prática, sem nunca falar explicitamente. Então, quando o público estiver acostumado, é hora de surpreendê-los. O Coringa nutre um certo respeito (ou amor...) pelo Batman. Acabamos ficando acostumados com isso: ele não quer matar o Batman, por mais atrocidades que cometa com outras pessoas. Assim, quando ele mata o Robin, espancando-o com um pé-de-cabra, ou quando aleija a Batgirl, ficamos chocados. O ethos do personagem sugere que os personagens principais são “imunes” às suas loucuras. Mas o ethos é quebrado.
Personagens sem moralidade parecem, em sua maioria, muito infantis. Produto de mentes que, assim como a mente de crianças, ainda não desenvolveram plenamente um sentido de caráter. Portanto, se você quer um “anti-herói”, ótimo.
Mas faça direito!
Leonel Caldela
Matéria retirada da revista DRAGONSLAYER Nº 21